Desde que eu cortei meu cabelo bem curtinho, tenho observado uma inquietude nos locais em que passo. Não é todo mundo, mas posso afirmar que, em toda saída de casa, ao menos uma pessoa me segue com o olhar. Mesmo que a pessoa lá não esboce um sorriso, a gente meio que sabe instintivamente como é um olhar amistoso ou de admiração, né não? Bem, aqueles direcionados a mim nos últimos tempos estão longe de ser assim.

Sempre tive uma estatura robusta e um leve sobrepeso, o que, até o final do Ensino Médio, me fazia contrastar muito das demais garotas da minha idade. Sim, comporto mais uma daquelas típicas histórias de adolescente deslocada, contribuindo para uma autoestima muito baixa e um desprezo total pela minha aparência. 😩

Havia alguns colegas que chegaram a me apelidar de fashion e eu não ligava na época, mas hoje vejo que era uma ironia com a minha real falta de senso com o que vestia. De fato, eu não me importava: óculos desajeitados, camisetas masculinas - houve até uma fase poser metaleira, haha -, camisas sem silhueta, jaquetas enormes, calças jeans retas, tênis... Contanto que pudesse me esconder ali dentro, tava valendo. Era uma moldura adequada para aquele quadro formado por um bagaço de cabelo, uma pele cheia de espinhas estouradas e uma barriga saliente. Ora, who cares? Não se investe no que não tem potencial de melhorar - era esse o raciocínio por trás disso tudo.

O quadro começou a mudar na faculdade: ansiedade é normal quando se entra num ambiente desconhecido, mas aqueles primeiros momentos me lembravam da mesma inquietude para abrir um caderno novo, pronto para receber uma nova história. Depois de mais de dez anos imersa num microuniverso onde seu valor residia no quão bom você era (ou aparentava ser) na educação física, agora estaria num ambiente em que a aptidão intelectual era a bola da vez - e o quanto você poderia ser útil aos outros, mas desse tipo de abuso eu já estava imune em função de outros carnavais.

Ué, mas o que isso teria a ver? Bem, eu sempre fui uma zero à esquerda na educação física desde que me conheço por gente, então, num ambiente em que se é julgado por esse fator, como a escola, é difícil criar uma base sólida para a autoconfiança. Uma vez fora dessa "condição opressora", enfim,  eu poderia florescer da forma como bem entendesse. 🌸 Não foi um processo muito fácil, porque, a princípio, não havia nada que tivesse almejado para a minha imagem até aquele momento e, me projetando dali alguns anos, só conseguia visualizar algo nebuloso, incerto.

Acho até que todas as amizades que mantenho hoje podem ficar surpresas com isso, mas os cinco anos de faculdade foram os primeiros anos da minha vida em que realmente comecei a me importar com roupas, cuidados com o corpo, maquiagem, unha etc. E por que surgiu esse interesse? Por dois motivos: estava tentando encontrar meu estilo, meu jeito; e, finalmente, comecei a ver um pouco de beleza em mim.

Ainda na faculdade, tive o primeiro estalo de que poderia cortar o cabelo curto - até então, mantinha o comprimento pouco abaixo dos ombros, mas deixá-lo solto já me incomodava há muito tempo. Você pode já ter ouvido ou lido algo parecido, mas, se me perguntarem, eu recomendo que as pessoas cortem o cabelo curto ao menos uma vez na vida (mas com um profissional, pelamordadeusa). Sério, é libertador! 💇 Além de sentir a cabeça dois quilos mais leve e um ventinho permanente impagável na nuca, você pode encontrar uma alternativa inédita de si mesmo diante do espelho: ah, eu posso ficar assim também e ainda assim sou eu.

No meu aniversário do ano passado, resolvi deixar ainda mais curto do que era e aderi ao "pixie cut" (googlada esperta nele! 😉). Na real mesmo, eu queria raspar tudo na máquina zero, mas sei que o formato da minha cabeça não é muito bonito para tanto, então provavelmente me arrependeria. Toda orgulhosa com a mudança corajosa, voltei para casa serelepe, apenas para me deparar com o olhar incrédulo dos meus pais. Para digerirem a nova informação, levaram cerca de uma semana.

Eu não entendi e ainda não entendo porque foi tão difícil para eles aceitarem isso. Aliás, retiro o que disse, porque não devem ter aceitado totalmente. Por esses dias, estávamos assistindo a uma novela juntos e os dois apontaram para uma atriz com cabelo curto, mas mais cheinho e comportado: você podia deixar seu cabelo assim, fica melhor. Foram uníssonos. Com um uhum desinteressado, cavei a cova e sepultei o assunto no chão daquela sala na hora.

Foto por: Blue Bird Mundo

No entanto, os "zumbis" da reprovação parecem estar à espreita da porta de casa para fora. São os zumbis do status quo, vigilantes que zelam pela uniformidade de formas, cores e comportamentos, para quem o mundo deve ser captado em preto e branco. Usou um batom mais "cheguei", compôs um look pegando peças do setor do sexo oposto ou adotou um estilo mais andrógino? Ah, você entrou no campo de visão deles e não sairá até que eles te percam de vista durante o percurso. Vale até virar o pescoço e se inclinar no processo (chega a ser engraçado de tão ridículo, haha 😂), o importante é não te perder de vista tanto quanto for possível!

Sabem o Agente Smith, da trilogia "Matrix"? Acho que a metáfora pode se encaixar bem: quem se atreve a ser diferente dentro do sistema, começa a ser "perseguido"; essa intimidação silenciosa tem o intuito de eliminar a anomalia, desencorajando a tal "audácia" para que o indivíduo volte a pertencer ao padrão, ao status quo. Pirei? Li muita distopia? Pode até ser, mas esses agentes censores são bem reais: é o seu vizinho de porta, o zelador do prédio, a dona da banca de revista, a senhora no ponto de ônibus, um online buddy do Facebook, o cara aleatório por quem se cruza caminhos na calçada...

Gente, eu só cortei o cabelo curtinho, passei umas máquinas lá nos cocoroco de trás (recomendo incluir no pacote quando inventar de cortar o cabelo curtinho, dá um soniiiiinho de tão gostoso), uso duas camisetas masculinas que a-m-o e umas botinas de amarrar. Quero ver quando finalmente conseguir tatuar os braços... 😩 Mentira, não quero ver não. Mas, com as graças da força de vontade em economizar, uma hora vai acontecer.

No Japão, se garotas e mulheres cortam o cabelo curto de uma hora para a outra, a primeira coisa que pensam é que ela superou ou está superando um coração partido. No Brasil, divagam se você seria lésbica ou, quem sabe, um homem transexual. E se fosse, qual é o problema? O que isso te diz respeito? Por que essa cara feia para mim? Certa vez, ouvi uma fala numa novela de que "não se confia em mulheres de cabelo curto". Passaram-se anos e essa fala ficou ainda gravada na minha memória... Que estigma mais idiota.

Então, vamos ao exercício de empatia: como é o cotidiano das pessoas que são oito mil vezes mais estilosas, irreverentes e, por quaisquer outros fatores, "fora-da-caixinha" do que eu? Tenho certeza de que a maioria deve falar que não liga, mas imagino que seja difícil "fazer a egípcia" for real quando a intimidação, ainda que silenciosa, é uma experiência diária. Tipo, "água mole em pedra dura, tanto bate até que fura" não é um ditado popular à toa, né? Dói, machuca ou, no mínimo, alguma camada do seu consciente vai levar em consideração, processar e remoer tudo isso.

Pensando assim, eu devo ocupar só a pontinha marota do iceberg. De fato, talvez não seja o prato favorito dos mantenedores do status quo de plantão, mas também vivencio a reprovação social, ainda que em menor grau. Sendo assim, acredito que me manter firme e consciente sobre o que quero para a minha imagem, assim como não abaixar a cabeça e voltar à caixinha já seja um ato político, uma pequenina contribuição para uma maior aceitação da pluralidade de estilos, cores, formas e expressões como o novo "normal".

Sem drama, esse não é apenas um cabelo curtíssimo, essa não é apenas uma roupa de outra arara, essa não é apenas uma figura andrógina: é parte do meu papel na sociedade.

22.1.18

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